A Estatística como Dispositivo de Poder Simbólico e a Codificação da Hegemonia Agrária
A presença explícita da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) no questionário do Censo Agropecuário do IBGE transcende a simples descrição organizacional. Trata-se da inserção institucional de uma entidade patronal dentro da estrutura de produção estatística estatal, um fato que, quando posto em contraste com a ausência total de referência à Federação dos Trabalhadores na Agricultura (FETAG) ou a outras organizações sindicais camponesas, denuncia uma arquitetura de poder profundamente enviesada.
1. A Herança Corporativa do Estado e a Legitimação do Patronato
O ponto de partida para essa análise deve ser a estrutura corporativa do Estado brasileiro. A inclusão da CNA na seção de representação institucional não é acidental; ela é uma herdeira direta do modelo varguista. Historicamente, o Estado conferiu legitimidade e visibilidade formal às entidades patronais. A CNA, ao ser nominalmente mapeada pelo Censo, tem sua capilaridade política e associativa reconhecida e formalizada pelo aparelho estatal.
Em contrapartida, as organizações de base camponesa, como a FETAG, permanecem periféricas, invisibilizadas ou relegadas ao genérico rótulo de “outras associações”. Esta distinção metodológica não é apenas descritiva, mas reforça e perpetua a assimetria histórica que sempre marcou as relações de classe e poder no campo brasileiro.
2. O Não-Lugar da Neutralidade: O Censo como Tradutor de Visões Dominantes
É fundamental desmistificar a noção de que o IBGE, enquanto instituição estatal, é um ator neutro. As categorias, os instrumentos de coleta e os próprios recortes censitários traduzem visões de mundo dominantes. No contexto agrário, essas visões são fortemente influenciadas e moldadas pelo bloco agrário hegemônico — que inclui grandes proprietários, exportadores e seus representantes políticos e institucionais.
O fato de a CNA aparecer nominalmente confere-lhe um estatuto de representação legítima e universal do setor agropecuário. Este ato de nomeação estatística opera uma poderosa naturalização:
A ideia de que “agricultor” é sinônimo de “produtor patronal” é reforçada, marginalizando simbolicamente as demais lógicas produtivas, como a agricultura familiar e camponesa.
A ausência da FETAG, portanto, não pode ser tratada como um “lapso técnico”. É, na verdade, um reflexo da hierarquia simbólica e política em vigor.
3. O Efeito de Nomeação Estatal e a Produção da Realidade (Bourdieu)
Sob uma ótica sociológica mais aprofundada, podemos analisar o Censo, neste ponto específico, como um dispositivo de legitimação simbólica. Ele não se limita a registrar a realidade; ele a produz discursivamente ao consagrar certas instituições como centrais e relegar outras ao silêncio estatístico.
Isso se alinha perfeitamente ao que Pierre Bourdieu chamaria de “efeito de nomeação estatal”: o poder intrínseco do Estado de definir o que possui visibilidade, o que é legítimo e, crucialmente, o que é mensurável. Aquilo que é mensurável pelo Estado é reconhecido como digno de existência pública e, consequentemente, digno de atenção política. Ao conceder esse poder de nomeação à CNA e negá-lo à FETAG, o Estado traça a fronteira entre os sujeitos políticos reconhecidos e os subalternizados.
4. O Impacto Material e a Reprodução do “Pacto Agrário”
Essa distinção não permanece apenas no plano simbólico. Ela gera efeitos reais sobre a formulação de políticas públicas. As estatísticas oficiais derivadas do censo servem de base para decisões críticas tomadas por ministérios, bancos públicos e organismos multilaterais.
Ao refletir uma estrutura representativa enviesada, o Estado reconhece e reproduz a narrativa de que a CNA é o interlocutor “natural” do campo. Isso empurra os trabalhadores rurais e suas entidades para as margens do discurso institucional, afetando diretamente o acesso a crédito rural, programas de desenvolvimento e debates sobre política agrícola.
Adicionalmente, o lugar da CNA no questionário pode ser lido como a expressão técnica de um “pacto agrário” secular. Este arranjo político histórico, que perdura desde a República Velha até o agronegócio contemporâneo, assegura a centralidade dos grandes produtores e exportadores. A menção censitária é, assim, um gesto burocrático que traduz uma relação de poder profundamente enraizada na história política brasileira.
5. A Subalternização dos Sujeitos da Economia Camponesa
O contraste entre as lógicas de representação é gritante. A CNA corporifica o discurso da eficiência, competitividade e inserção no mercado global. Em contrapartida, as federações de trabalhadores, como a FETAG, representam a economia familiar, camponesa e solidária, sendo cruciais para a segurança alimentar, o desenvolvimento territorial e a sustentabilidade.
A dificuldade de inscrever essas formas de representação no espaço estatal resulta em sua sub-representação nas estatísticas oficiais, consolidando sua subalternização política.
Portanto, a análise minuciosa deste item do Censo nos permite inferir que a estatística oficial é um instrumento de poder simbólico ativamente orientado por forças políticas e econômicas específicas. Mais do que um mero detalhe técnico, a visibilidade concedida à CNA e a invisibilidade imposta às entidades camponesas são um indicador robusto da hegemonia do agronegócio na produção do discurso estatal sobre o campo brasileiro.
Prof. Dr, Eriosvaldo Barbosa
Referências
- BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
- FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.
- POULANTZAS, Nicos. O Estado, o Poder, o Socialismo. Rio de Janeiro: Graal, 1980.
- CONTAG. História e Organização do Movimento Sindical Rural no Brasil. Brasília, 2013.
- IBGE. Censo Agropecuário 2017: Manual do Recenseador. Rio de Janeiro: IBGE, 2017.

